Editorial
Em uma condição de crise com amplitude cada vez maior (energética, ambiental, social, econômica ou mesmo ideológica) - faz-se necessária uma mudança de perspectiva. A ação do arquiteto e urbanista enquanto o propositor da "novidade", aquele que soluciona as questões através da proposição de uma nova ordem morfológica e estética, precisa ser repensada em termos mais abrangentes. A excessiva vontade de originalidade e ineditismo - através de um processo de substituição do existente pelo novo - pode ser repensada incorporando conceitos como transformação, conversão, reutilização, recuperação, regeneração, como possíveis estratégias frente à tal condição contemporânea.
Por isso, este número da revista Prumo traz para o debate a pertinência de diversas formas de agir pensando a preexistência (em termos arquitetônicos, urbanísticos, paisagísticos, territoriais) como possibilidade de continuidade e não de ruptura, através de ações e reflexões que busquem a transformação e a mudança frente à obsolescência das coisas e sistemas. É necessário enfrentar um embate inevitável: por um lado, as necessidades conservacionistas e patrimoniais, por outro, a aceitação das transformações técnicas, sociais e estéticas como naturais do fluxo temporal. Como consequência, possíveis estratégias de interpretações físicas e simbólicas da preexistência, que não prescindem, logicamente, de fórmulas apriorísticas, mas que se mostram cada vez mais compatíveis com a vitalidade e sustentabilidade das nossas cidades.
Ainda que com um eixo temático preciso, este número apresenta uma enorme diversidade de interpretações e desdobramentos do mesmo, gerando uma série de artigos com enfoques diversos. Dentro de uma perspectiva teórico-metodológica mais estreita, apresentamos dois artigos: a abordagem das preexistências urbanas sob a ótica de Cesare Brandi trazida por Manoela Rufinoni (USP-SP) e as problematizações entre antigo e novo a partir de Francisco De Gracia e Giovanni Carbonara tratadas por Fabiola do Valle Zonno (UFRJ-RJ). Ainda em um âmbito teórico-metodológico, porém menos específico, apresentamos a abordagem de Alessandro Massarente (Unife-Italia) em que trata as modificações de usos de edifícios preexistentes e sua inserção nas dinâmicas das cidades, principalmente a partir da experiência italiana do século XX.
Por outro lado, apresentamos alguns exemplos de práticas projetuais que pensam as intervenções sobre preexistência, muitas delas com forte presença simbólica que é potencializada por seus novos usos. O pensamento de João Mendes Ribeiro e Ana Maria Feijão (Portugal) é ilustrado por seis projetos de sua autoria, da mesma forma que o posicionamento de Arturo Franco Díaz, Ana Navarro Bosch e Nuria Salvador Luján (Espanha) é apresentado em três projetos para Matadero Madrid, onde três respostas diversas são dadas a três condições específicas, ainda que dentro do mesmo conjunto.
Outro grupo de artigos aborda a noção de preexistência com o olhar para objetos específicos, como é o caso de Marta Bogéa (FAU-USP) que analisa o projeto para o Terreiro Candomblé Ilê Axé Oxumarê, situado na cidade de Salvador, tendo em vista a preservação simbólica e cultural; Roberta Krahe Edelweiss, Fábio Bortoli e Carlla Portal Volpatto (UniRitter / Mackenzie-SP) que apresentam o estudo de caso do Museu do Pão e do Caminho dos Moinhos no Rio Grande do Sul; Ivo Giroto (USP-SP) que analisa o Museu de Arte do Rio (MAR) a partir dos diálogos com o patrimônio urbano e edificado e Joana Martins Pereira e Ana Luiza Nobre (PUC-Rio) que abordam o projeto Bairro da Bouça de Alvaro Siza Vieira em seus dois momentos, de implantação e de reabilitação. Maria Laura Ramos Rosenbusch (PUC-Rio) propõe uma análise da obra do escritório francês Lacaton & Vassal através da identificação de suas motivações críticas para o uso da recorrente estratégia de apropriação de preexistências. Ainda com um olhar específico para um objeto, a Catedral Metropolitana da Cidade do México e as ruínas do Templo Mayor, ambas localizadas na praça de Zócalo na Cidade do México, mas através de uma narrativa histórico-ficcional, Tomas Camillis (PUC-Rio) nos faz refletir sobre as preexistências ao articular a narrativa do encontro entre duas personagens históricas: o conquistador espanhol Hernán Cortés e o imperador asteca Montezuma, e de como as suas personalidades se materializaram e resistiram - ou não - à passagem do tempo através de duas obras arquitetônicas.
Tatiana Terry (PUC-Rio/PROURB-UFRJ) propõe uma ampliação da noção de preexistência, tensionando a exaltação da paisagem do Rio de Janeiro (reconhecida como patrimônio mundial pela UNESCO em 2012) com a presença das favelas e sua exploração enquanto circuito turístico cultural. Também na lógica na produção do espaço público assumindo a escala do território, Pedro Barreto de Moraes (PUC-Rio/PROURB-UFRJ) discute a noção de infraestrutura enquanto suporte ao projeto do território, no caso do Rio de Janeiro, e Luisa Gonçalves (FAU-USP) apresenta a relação entre arquitetura, infraestrutura e metrópole através de estações do metrô de São Paulo implantadas em seu centro histórico, problematizando suas questões físicas e simbólicas. De forma a fomentar ainda o debate apresentamos a tradução de alguns ensaios do designer e pensador italiano Andrea Branzi (integrantes de seu livro “Modernidade enfraquecida e difusa: o universo dos projetos no início do século XXI”, publicado em 2006), que trazem reflexões possíveis sobre o futuro do projeto de objetos e cidades.
Logicamente estes grupamentos não são estanques e cruzamentos entre as diversas abordagens são possíveis, o que torna este número tão plural e abrangente. Isto nos faz pensar que trabalhar sobre a preexistência, independente do tema e da escala, é uma maneira de reflexão sobre a nossa própria condição contemporânea.
Ana Paula Polizzo
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